Pesq. Bras. em Ci. da Inf. e Bib., João Pessoa, v. 14, n. 4, p. 078-088, 2019.
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ORGANIZAÇÃO DO CONHECIMENTO E BIBLIOGRAFIA HISTÓRICA:
O HORIZONTE INTERDISCIPLINAR
E-mail:
vilela.karine@gmail.com
gmverri@yahoo.com.br
Karine Gomes Falcão Vilela
1
, Gilda Maria Whitaker Verri
2
RESUMO
Trata-se da Organização do Conhecimento e sua relação com a Bibliografia Histórica mediada pelo
objeto-livro. As reflexões fazem parte do projeto de dissertação em andamento intitulado A Biblioteca
da Faculdade de Direito do Recife e seu catálogo sistemático de 1896: uma análise sob a perspectiva da
Organização do Conhecimento e da Bibliografia Histórica. A Pesquisa aprovada no Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco tem por objetivo
demonstrar como o campo de atuação da Bibliografia Histórica, enquanto aparato teórico-metodológico,
confere caráter interdisciplinar à Organização do Conhecimento. A pesquisa documentária e bibliográfica
possui amparo epistemológico na Ciência da Informação, especificamente na Organização do
Conhecimento e na relação interdisciplinar estabelecida com a Biblioteconomia e a História do Livro. A
análise histórico-bibliográfica destaca o Catálogo Geral de 1896, da Biblioteca da Faculdade de Direito
do Recife e seus elementos constitutivos: natureza, planejamento, materialidade, repertório e análise
semântica do corpus documental. O Catálogo Geral constitui a ferramenta básica para entender a
socialização do conhecimento registrado.
Palavras-chave: Organização do Conhecimento. Bibliografia Histórica. História do Livro.
Biblioteconomia. Ciência da Informação. Interdisciplinaridade.
ABSTRACT
It deals with the Organization of Knowledge and its relationship with the Historical Bibliography
mediated by the book object. The reflections are part of the ongoing dissertation project entitled "The
Library of Recife Law School and its systematic catalog of 1896: an analysis from the perspective of the
Knowledge Organization and the Historical Bibliography." The research approved in the Graduate
Program in Information Science of the Federal University of Pernambuco aims to demonstrate how the
field of action of the Historical Bibliography, as a theoretical-methodological apparatus, confers an
interdisciplinary character to the Knowledge Organization. Documentary and bibliographic research has
epistemological support in Information Science, specifically in the Knowledge Organization and in the
interdisciplinary relationship established with Library and Book History. The historical-bibliographical
analysis highlights the 1896 General Catalog of the Recife Law School Library and its constitutive
elements: nature, planning, materiality, repertoire and semantic analysis of the documental corpus. The
General Catalog is the basic tool for understanding the socialization of recorded knowledge.
Keywords: Knowledge Organization. Historical Bibliography. Book History. Librarianship. Information
Science. Interdisciplinarity.
1
Universidade Federal de Pernambuco. Recife PE. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Informação.
2
Universidade Federal de Pernambuco. Recife PE. Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Informação.
Pesq. Bras. em Ci. da Inf. e Bib., João Pessoa, v. 14, n. 4, p. 078-088, 2019.
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INTRODUÇÃO
A Ciência da Informação (CI) é conhecida por seu caráter interdisciplinar que agrega
contribuições de áreas como a Psicologia, a Matemática, a Economia e a Sociologia entre outras
ciências. Para Le Coadic (2004, p. 20) “A interdisciplinaridade traduz-se por uma colaboração
entre diversas disciplinas, que leva a interações, isto é, uma certa reciprocidade nas trocas, de
modo que haja, em suma, enriquecimento mútuo”. Dentre as subáreas que compõem a CI, a
gênese da Organização do Conhecimento (OC) nos remete à necessidade do controle
bibliográfico diante da explosão documental. Assim,
[...] a ideia de organizar e mapear as publicações existentes, enquanto representantes de
um conhecimento registrado tornou-se expressiva, e denomina-se controle bibliográfico,
que pressupõe um domínio completo sobre os itens que registram o conhecimento, no
intuito de identificá-los, localizá-los e obtê-los, que por sua vez, passam a necessitar de
toda uma atenção de estudos que envolvem esses aspectos." (SHERA, 1975 apud
PINHO, 2009, p. 30).
O conhecimento registrado ou passível de socialização constitui o objeto de estudo da
Organização do Conhecimento tendo no objeto-livro seu principal veículo de acesso e
preservação (BARITÉ, 2015). A necessidade de tornar o conhecimento como algo visível e
palpável acompanha a humanidade desde épocas mais remotas e traz conforto e segurança à sua
existência (POMBO, 1988; ARAÚJO, 2018). Neste sentido, às bibliotecas compete impor ordem
à produção crescente de registros documentais sistematizando o conhecimento e laçando sobre
ele representações que o tornem compreensível e acessível.
O ato de classificar integra a História do Livro e das bibliotecas, antes mesmo do
surgimento do livro-códice
3
ou da impressa. As classificações estão sempre relacionadas a um
propósito e este, à noção de organização (GOMES, 2017). Sejam filosóficas (categorização das
ciências) ou bibliográficas (preservação da informação em bibliotecas) a ação classificatória
busca tratar o conhecimento de maneira sistêmica, tornando-o compreensível e acessível por
meio de conceitos, esquemas de classificação, códigos de catalogação ou bibliografias que deem
conta da representação da informação de maneira organizada.
Com a organização dos registros do conhecimento foi possível dar forma à produção
documental, e ainda trazer “a ordenação do movimento elementar do pensamento” (SORDET,
2017, p. 23) por meio de listas, catálogos, repertórios, índices, dentre outras ferramentas
bibliográficas. Tais produtos bibliográficos resultam de práticas biblioteconômicas e integram a
História do Livro por meio da organização, preservação e uso da informação. Diante disso, Pinho
(2009, p. 21, grifo nosso) descreve:
Os estudos sobre a organização do conhecimento têm ligação com as pesquisas sobre
a história do livro e da escrita, uma vez que os meios, utilizados para comunicar
ideias, representam um componente importante na relação leitor-texto, pelo fato de
condicionarem os próprios modos de pensar. Dessa forma, a relação que se estabelece
3
Roger Chartier e André Belo ratificam os primeiros suportes da escrita: conchas, cascos de tartarugas, tábuas de
pedra, tabletes de madeira ou argila, rolos de papiro ou pergaminho. Esses materiais são considerados tipos de
livro que antecederam o formato atual do livro que é o códice.
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entre esses componentes influenciará a produção do conhecimento e, logo, a sua
organização.
Assim, a pesquisa visa demonstrar como o campo de atuação da Bibliografia Histórica,
enquanto suporte teórico-metodológico, confere caráter interdisciplinar à Organização do
Conhecimento. É pressuposto que o conhecimento registrado ganha novo sentido na
materialidade do objeto-livro ao ser analisado sob a perspectiva da Bibliografia Histórica,
vertente da Bibliografia que, deixando de lado apenas a descrição física dos objetos
informacionais é um “campo de estudo [...], [que] sinaliza uma mudança, parcial mas
significativa, de questões de autoridade de texto para aquelas de disseminação e leitura enquanto
questões de razão política e econômica” (McKENZIE, 2018, p. 11). Assim também pode se
tornar uma disciplina central, fundamental para o entendimento das formas através das quais
uma comunidade informa e produz sentido em suas experiências” (CRIPPA, 2015, p. ii).
Na perspectiva da Bibliografia Histórica, a análise histórico-documental do “Catálogo
Geral da Biblioteca da Faculdade de Direito, produzido pelo jurista-bibliotecário Manuel
Cícero Peregrino da Silva, em 1896, fundamentará a ação interdisciplinar conferida à OC. Daí, o
desenvolvimento de algumas reflexões na dissertação intitulada A Biblioteca da Faculdade de
Direito do Recife e seu catálogo sistemático de 1896: uma análise sob a perspectiva da
Organização do Conhecimento e da Bibliografia Histórica” cujos objetivos apresentamos a
seguir.
2 OBJETIVOS
A dissertação em andamento tem como objetivo geral analisar os processos de produção
do catálogo de 1896 sob a perspectiva da Organização do Conhecimento e da Bibliografia
Histórica. Quanto ao objetivo específico é descrever o Catálogo Geral da Biblioteca de Direito,
por meio da descrição dos seus elementos constitutivos. São eles:
a) natureza/finalidade; b)planejamento; c)materialidade; d) repertório; e) análise semântica
do corpus documental.
Reunidas as informações básicas, será demonstrado em um quadro geral o modus operandi
aplicado à organização do conhecimento e da informação adotados para o catálogo e os indícios
do gesto bibliográfico da cultura livresca jurídica à época da República Velha. A Bibliografia
Histórica proporciona um corpus informacional a ser utilizado na contextualização do catálogo
e o modus operandi que à época sistematizou o conhecimento registrado na instituição. Serão
considerados os aspectos históricos e críticos pertinentes à Bibliografia, desde a produção até o
acesso e seu uso.
3 ORGANIZAÇÃO DO CONHECIMENTO E BIBLIOGRAFIA:
APARATO TEÓRICO-METODOLÓGICO
A sistematização do conhecimento está intimamente ligada ao senso de organização da
palavra escrita que nos legou diferentes tipos de classificação para os registros documentais,
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dentre os quais, destacamos a classificação bibliográfica desenvolvida para bibliotecas cujo
cerne gira em torno da organização dos registros documentais e da socialização da informação.
A informação, por sua vez, é o ativo da memória e quando perda da informação, perde-se a
identidade e o capital informacional é reduzido.
A classificação é entendida por Shera (1965 apud BETTENCOURT 2011, p. 28) como: “a
história da busca pela organização do conhecimento humano, uma história da adaptação dos
sistemas filosóficos aos materiais e às necessidades das bibliotecas. Por meio da classificação, a
biblioteca desempenha sua função de organização do conhecimento demonstrando toda a gama
de assuntos presentes nos livros e suas possíveis relações. Assim entendido, Langridge (1977, p.
45) reitera que “a característica mais importante da classificação em biblioteca é, portanto, sua
relação com a classificação do conhecimento”. Devido à classificação, o senso de organização
traz ordem e disciplina a multidão de ideias dispersas nos livros, sistematizando o conhecimento
em catálogos, bibliografias, tesauros, instrumentos de informação.
A natureza subjetiva do conceito de informação faz Buckland (1991) incorporar o conceito
de documento, primeiramente apresentado por Briet (2016), reforçando a necessária
materialidade documental. O conhecimento registrado gera informação e exerce sua função
social por meio de um suporte físico. Desse modo, vê-se no âmbito da OC estudos que
promovem o retorno à junção da materialidade e do conteúdo do objeto-livro de maneira a
reforçar o caráter social da informação ao que Donald Mckenzie (2018, p. 15, grifo do autor),
acrescenta:
[...] um livro nunca é somente um objeto admirável. Como qualquer outra tecnologia,
ele é invariavelmente o produto da agência humana em contextos altamente voláteis,
que o estudo acadêmico responsável deve procurar recuperar se quisermos melhor
entender a criação e a comunicação de significado como as características definidoras
das sociedades humanas.
Chartier (1999) e Darnton (2010), entre outros historiadores, defendem a ideia do livro
enquanto objeto cultural. Essa percepção é reforçada na “sociologia dos textos” defendida por
Mckenzie (2018). Para contextualizar o livro, enquanto objeto cultural, Darnton o identifica
como produto somatório de variáveis presentes no tempo e espaço no qual circula.
Diante dessa perspectiva e frente aos avanços das tecnologias da comunicação e da perda
irremediável dos registros da memória no final da década de 1990, na França
4
, houve um
despertar das ciências humanas numa volta aos marcos do passado, para contrabalançar a
supervalorização do conteúdo dos documentos em detrimento do continente. Assim, há o retorno
da união entre o conteúdo das obras e o seu suporte físico revelando a complexa rede de atores
que atuam, por exemplo, num ambiente de biblioteca, atribuindo aos livros representações que
denotam tanto os objetivos institucionais, como a influência da carga cultural de quem os
classifica. Aqui, Organização do Conhecimento e Classificação são entendidas como sinônimos,
embora tratem de dois conceitos distintos e possuam o mesmo propósito de atuação: sistematizar
o conhecimento de maneira lógica e compreensível.
4
Bibliotecários, historiadores e pesquisadores, de diversas áreas, reuniram-se numa conferência na França, em
1994, para refletir sobre o destino da Biblioteca Pública e Nacional da França. Como fruto desse encontro foi
editada a obra O Poder das Bibliotecas reunindo textos que enfatizavam a importância do livro e da biblioteca
como registro do conhecimento, por conseguinte, registro da memória. Cf. BARATIN, Marc; JACOB, Christian. O
poder das bibliotecas: a memória dos livros no ocidente. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008.
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A visão de mundo imbuída da carga cultural que cada indivíduo leva consigo, quando
aplicada à organização em bibliotecas, manifesta o gesto bibliográfico e este, influenciado pela
sistematização das ciências e, posteriormente, impelido pelo aumento da produção documental,
impacta a organização da informação. Novidades surgiram na esteira de um novo modus
operandi que migrou da “ordem racional do conhecimento” para a “ordem arbitrária do
alfabeto”. Esse novo recurso trouxe mudança de ponto de vista na perspectiva do tratamento e
uso da informação. Os índices alfabéticos passaram a integrar o arranjo sistemático do catálogo-
códice firmando-o como ferramenta de referência na economia do livro, mesmo depois do
surgimento do catálogo-fichário. Logo, a feitura de um catálogo apresenta um discurso moldado
não apenas por regras e princípios técnicos ou filosóficos, mas, sobretudo, do reflexo do tempo e
espaço em que foi construído e por quem foi planejado. Logo, seguindo o raciocínio de Jacob
(2008, p. 46): “A acumulação pura dos livros deve ser acompanhada de um projeto intelectual,
de uma ordenação, uma ‘sintaxe’”.
Fruto dessa nova dinâmica documental, eis que a Bibliografia assume um papel
fundamental na mediação da informação integrando os estudos da Organização do
Conhecimento e Biblioteconomia. Seu campo de ação vai além da socialização da informação
por meio do seu caráter pós-custodial e incorpora o status de uma metadisciplina para o
tratamento dos documentos” (CRIPPA, 2015, p. iv). Assim, adquire um caráter tanto descritivo
quanto interpretativo revelando as tensões a que as bibliotecas estão submetidas como esclarece
Verri (2010, p. 38-39):
Uma biblioteca, entretanto, não é “uma instituição que existe em si e por si”, ela se
projeta em dois sentidos, um voltado para sua dimensão interior, num sistema de
comunicação inter-humana e outro voltado para o exterior, como instrumento social e
político do homem. Na inter-relação desses dois sentidos, estabelece-se um jogo político
entre a instituição, os indivíduos e o Estado, o que determina sua integração ou
diferenciação no conjunto de valores comuns que regem historicamente a sociedade.
[...]
Isto significa que a biblioteca constitui-se e serve distintamente a diferentes interesses,
atravessando as classes sociais e tornando-se campo onde se acumulam contradições,
oposições, afirmações, negações, tradições e inovações. Ressalta-se a força dialética que
a biblioteca tem e propicia, permitindo entendê-la como uma instituição que, por meio
de registros informacionais, relaciona-se e é impulsionada pela memória, pelo
desenvolvimento e movimento histórico do homem.
A Bibliografia, portanto, firma uma postura interdisciplinar ao relacionar o objeto-livro em
seus aspectos tanto materiais quanto sociais aos estudos da Organização do Conhecimento, da
Biblioteconomia e da História do Livro. Sua origem é anterior à imprensa, como fica visível nos
estudos de Louise-Noëlle Malclès (1956). Questão vista por Crippa (2015) ao analisar a
organização da informação, a partir de uma obra de referência do século VI de autoria de
Cassiodoro De Institutione Divinaruam Litterarum. A consagração do termo é decorrente da
presença dos tipos móveis e da atuação de eruditos como Conrad Gesner (séc. XVI) a quem se
confere a introdução da palavra bibliografia, indicando o sentido de descrição e indicação de
livros. André Araújo (2015, p.120) define Bibliografia enquanto disciplina por meio da:
Produção e difusão de documentos (instrumentos) de registro, organização,
representação, acesso e mediação da cultura escrita, notadamente os inventários,
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catálogos e bibliografias que foram produzidos e aperfeiçoados, seja na era manuscrita
ou impressa.
Isso revela, segundo o autor, a esfera bibliotecária da Bibliografia. Mas a Bibliografia
não apenas trata da organização e representação do conhecimento e da informação como dedica
atenção ao próprio objeto informacional: o livro, por meio de sua fisicalidade, considerando a
ideia de que a forma do livro/documento determina o seu sentido e seus modos de apropriação.
Teríamos aqui a esfera material da Bibliografia”. (ARAÚJO, 2015, p.120).
A Bibliografia perdurou enquanto ferramenta e produto de organização e disseminação do
conhecimento até que sua atuação foi-se esmaecendo dos currículos acadêmicos em detrimento
das novas tecnologias da informação. O fator econômico também contribuiu para interromper a
produção de bibliografias, que demandam, além de pessoal especializado, recursos de ordem
financeira para sua manutenção (ARAÚJO, 2018). Com Mckenzie, na década de 1980, voltou ao
cenário acadêmico a discussão em torno do livro, mediante o estudo da sociologia dos textos, o
que proporciona vislumbrar os sentidos do objeto-livro, por meio da análise de documentos e de
sua organização.
A instrumentalização da Bibliografia Histórica pode extrair da bagagem informacional dos
textos a materialidade outorgada ao objeto-livro. Sendo um ramo da Bibliografia material ou
analítica, a Bibliografia Histórica passou a ser desenvolvida pelos livreiros, comerciantes de
obras raras que a cada detalhe descrito sobre os livros, individualizava-os ainda mais e sobre eles
atribuía valor. Para André Araújo (2008, p. 22) a Bibliografia Histórica representa “a mudança de
relações entre os livros e sociedades que os produziram e os utilizaram, mas também como a
abordagem histórica de sistemas bibliográficos para a organização da informação e do
conhecimento registrado.
Logo, a interdisciplinaridade aqui requerida à Organização do Conhecimento é atribuída à
capacidade que a Bibliografia Histórica possui de interligar áreas comuns aos estudos sobre o
objeto-livro, sua produção, representação, disseminação e uso. Como a seguir, na análise do
Catálogo Geral da Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife, publicado em 1896.
4 RESULTADOS DA APLICAÇÃO DA BIBLIOGRAFIA HISTÓRICA À
ANÁLISE DO CATÁLOGO GERAL DA BIBLIOTECA DA
FACULDADE DE DIREITO
A Faculdade de Direito do Recife, instituição pública de ensino, sediada na capital
pernambucana, recebeu em 1896 o segundo catálogo impresso de sua coleção. A produção de
catálogos para as bibliotecas das Academias Jurídicas vinha sendo regulamentada por lei, desde
1855. No governo republicano o empreendimento recebeu novas orientações sendo a mais
recente por meio do Decreto 1.159, de 3 de dezembro de 1892 com a aprovação do Codigo
das disposições communs ás instituições de ensino superior dependentes do Ministerio da
Justiça e Negocios Interiores. O jurista-bibliotecário Manuel Cícero Peregrino da Silva, na
diretoria da Biblioteca, reproduziu na Advertência da obra o planejamento prescrito por lei:
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Art. 149. Haverá na bibliotheca quatro catalogos: das obras, pelas especialidades de que
tratarem;das obras, pelos nomes de seus autores;dos diccionarios; das publicações
periodicas.
A disposição acima instruiu o lastro geral do catálogo, ordenando de forma sistêmica as
matérias e introduzindo o índice alfabético de autor. Por catálogo sistemático entenda-se
“Catálogo de assuntos classificados […] isto é, que empregam códigos numéricos ou
alfanuméricos sistemas de classificação para representar os assuntos.” (MEY, 1995. p. 72).
Na gestão de Peregrino, repercutem os elogios feitos ao acervo organizado pelo jurista-
bibliotecário Clóvis Beviláqua, seu antecessor. A sinalização imposta aos livros era uma
numeração fixa de acordo com o número de tombamento anotado no dorso do volume que os
ordenava em estantes também numeradas. A publicação trouxe ao conhecimento público um
acervo jurídico e geral que acumulava mais de seis mil volumes
5
. Cada tulo era referenciado
pelo autor em negrito seguido do título
6
, responsável pela tradução, edição, imprenta, formato e
quantidade de exemplares. No término da obra a errata reparava os erros tipográficos,
inevitáveis. Além do índice que integrava o catálogo sistemático ampliando o cruzamento de
informações, Peregrino também fez uso das remissivas trazendo dinâmica à pesquisa e
ampliando os pontos de acesso à informação.
A Biblioteca de Direito, embora tivesse um acervo de natureza humanista, especializava-
se cada vez mais em sua área de atuação. Se o Direito Canônico prevaleceu no núcleo formador
da Biblioteca, 66 anos após a criação da Biblioteca o Direito Romano, o Público, o
Constitucional e o Civil expressavam os novos rumos do ensino jurídico brasileiro que aos
poucos afastava-se da concepção divina e tornava-se produto da atividade humana
(BEVILÁQUA, 2012). A distribuição das matérias no catálogo que reúne o acervo jurídico e o
acervo de obras gerais, à semelhança da edição do primeiro catálogo de 1860
7
, inicia pelo
Direito. Peregrino, por sua vez, amplia as subdivisões das classes jurídicas em 17 ramificações
baseadas no currículo acadêmico e este, seguia a normativa nacional distribuição das disciplinas
regulada pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, órgão federal a que os
estabelecimentos de ensino superior eram subordinados.
Logo, ficaram divididas as classes na seguinte ordem: I. Sciencias jurídicas e sociaes. 1.
Philosophia do direito, 2. Direito romano, 3. Direito publico e constitucional, 4. Direito civil, 5.
Direito criminal e criminologia., C. Direito criminal militar, 7. Direito internacional publico e
privado, 8. Economia política, 9. Sciencia das finanças e contabilidade do estado, 10. Direito
comercial, 11. Processo civil, commercial e criminal, 12. Medicina publica, 13. Sciencia da
administração e direito administrativo, 14. Historia do direito, 15. Legislação comparada sobre
o direito privado, 16. Direito eclesiástico, 17. Miscellanea juridico-social, 18. Legislação
brasileira, 19. Legislação estrangeira e 20. Politica e administração brasileiras.
5
No relatório apresentado à Congregação em 1898, o professor José Joaquim de Oliveira Fonseca informa ter a
Biblioteca acumulado cerca de 10.000 volumes.
6
Os títulos são apresentados na íntegra sem abreviação e no idioma do próprio documento, portanto, não foram
traduzidos para o português.
7
No ano de 1860 a Biblioteca da Faculdade de Direito tem publicado seu primeiro catálogo cuja produção era
requerida por lei, desde 1854. Organizado pelo cônego-bibliotecário Joaquim Pinto de Campos sua feitura denota
simplicidade e reflete estado no qual a Biblioteconomia ainda dava seus primeiros passos na Biblioteca de Direito,
30 anos após sua criação.
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O senso de classificação que Langridge (1977) afirma ser natural aos humanos e à
organização dos registros que acompanham e integram a evolução das bibliotecas ao senso de
mediação da informação. Assim, Peregrino decidiu classificar os assuntos gerais que formavam
o acervo da Biblioteca de maneira a melhor atender seu público alvo. Como resultado, fugindo a
adoção de qualquer sistema bibliográfico em voga, ele mesmo desenvolveu a classificação dos
demais assuntos referente as áreas que compunham o corpus do catálogo em 17 classes na
seguinte ordem: II Sciencias physicas e naturaes, III. Sciencias medicas, IV. Mathematica, V.
Philosophia, VI Religião, VII Geographia, VIII. Historia, IX. Philologia e linguística, X
Rhetorica e poética, XI. Litteratura, XII. Bibliographia, XIII. Instrucção e educação, XIV Artes e
industrias, XV. Encyclopedia, XVI. Polygraphia, XVII. Variedades. Nenhuma das classes
apresenta ramificações.
Ao fazer esta escolha, Peregrino não contrariou nenhuma ordem estabelecida, mas tão
somente adequou a organização do acervo à classificação
8
que melhor atendesse sua comunidade
acadêmica. Ele não usou de princípios arbitrários e talvez tenha consultado obras de referência
(anais da Biblioteca Nacional, catálogos, bibliografias, manuais para bibliotecários) presentes no
catálogo na seção
Bibliographia. Mesmo sem fazer menção ao uso de sistema de classificação ou catalogação
vigente como a do livreiro francês Jaques Brunet (1780-1867) de quem a Biblioteca Pública à
época possuía a edição de 1847, Peregrino pode ter sido influenciado pela praticidade que a
Biblioteconomia na França, Itália e Alemanha adquirira no arranjo dos livros e na representação
da informação.
O ajuste feito por Peregrino à distribuição das matérias demonstra o avanço e integração
das ciências nos estudos jurídicos por meio de obras de física, química e biologia, por exemplo,
integrando as Ciências Médicas ao Curso Jurídico.
A gestão de Peregrino é motivo de elogios nas Memórias Históricas da Faculdade de
Direito e nos seus Relatórios Administrativos. Além da aquisição de boas obras, a organização
física e o próprio catálogo colaboraram para dar vida à biblioteca dinamizando o uso do acervo.
Peregrino aparentava calma e descrição. Bem relacionado com seus pares, tentou ingresso na
vida docente, mas foi reprovado. Seu verdadeiro dom foi desenvolvido na direção da Biblioteca
de Direito, dela saindo em 1900 para assumir a direção da Biblioteca Nacional, a mais alta
instituição congênere no Brasil (BITTENCOURT, 1967).
No Catálogo Geral da Biblioteca de Direito são elencados volumes de livros, periódicos,
teses e obras de referência indicadas pela tipologia documental. O critério usado na seleção do
repertório é destacado por Peregrino como sendo apenas as obras encadernadas, até junho do ano
corrente. Daí. a importância da encadernação, serviço previsto em lei, como elemento de
conservação dos volumes e aqui apontado como critério para a seleção do corpus documental
9
que compôs o catálogo. O catálogo foi produzido no Recife na Empreza d’A Provincia, rua
8
Importante observar que no século XIX ainda não havia um modelo padrão a ser adotados pelas bibliotecas. Cada
uma fazia uso do sistema de classificação que melhor adequasse a representação do seu acervo e, por vezes, mais de
uma influência podia ser notada num mesmo catálogo Ferraz (2017).
9
Antes da industrialização dos livros era comum a venda de obras sem encadernação. Essa prática diminuía o
volume dos itens facilitando seu transporte, além de baratear os custos de sua comercialização. A instituição ou o
particular que adquirisse os livros deveria provê-los de encadernação ou solicitar que estes viessem encadernados
como atesta Midori (2017, p. 163) ao referir-se à compra de livros pela Biblioteca da Faculdade de Direito de São
Paulo, em 1882.
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Quinze de Novembro, 49 e 51 e Caes da Regeneração 42, 44 e 44ª, em 1896. Impresso no
formato in com encadernação clássica com meia capa em couro e papel marmorizado traz, na
folha de rosto, o brasão republicano. O papel usado para impressão do miolo e folhas de guarda
do tipo industrial é ácido, tornando as folhas quebradiças e manchadas. O exemplar apresenta
algumas marcas de consulta com riscos que indicam seleção de obras. Além disso, marca de
carimbo, número de tombamento e cartão de empréstimo configuram os sinais como registros da
Biblioteca de Direito.
Por fim, com a análise do repertório, pode-se inferir por meio do catálogo que este
espelha as mudanças pela qual o ensino do Direito passou na Academia do Norte. Permaneciam
presentes no acervo autores da bibliografia básica do Curso indicados nos Estatutos do Visconde
de Cachoeira como o latinista J. G. Heineccius em quatro títulos, bem como, autores das
Ciências Naturais, como Charles Darwin, em edição de 1891 para La descendance de
lhomme. Aliás, antes mesmo da laicização do ensino firmada na constituição republicana de
1891 o evolucionismo filosófico faz-se presente na Faculdade de Direito por meio do movimento
intitulado Escola do Recife, encabeçado por Tobias Barreto e Sylvio Romero. O positivismo,
monismo, evolucionismo e outras teorias diversas recebeu o olhar crítico desses juristas. Dentre
os autores por eles estudados a presença de Jhering de quem a Biblioteca indicava sete obras
das quais duas traduzidas para o português, uma delas A lucta pelo direito utilizada por Sílvio
Romero na defesa de sua tese. Também August Comte com o Cours de philosophie positive,
edição de 1869 em 6 v. A literatura alemã ganha espaço no acervo por meio de Imanuel Kant
dentre outros filósofos e juristas alemães citados por Tobias em seus estudos.
A Filosofia do Direito, que abre o catálogo jurídico, ganhou novo olhar afastando-se da
carga teológica e determinista dedicada aos estudos jurídicos. Em 1889 a Biblioteca foi
enriquecida por esse senso crítico ao receber o acervo de Tobias, após a sua morte. O
pensamento de Tobias Barreto marca presença na Filosofia do Direito, bem como, no Direito
Criminal. As aquisições de livros por compra e permuta foram aos poucos municiando o ensino
jurídico do Norte do país e nele fomentando um pensamento original próprio à realidade
nacional desprendendo-se, no possível, da influência estrangeira.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não como falar de livros e bibliotecas sem fazer menção aos seus catálogos. Na
Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife o Catálogo Geral de 1896 reflete, por meio do
arranjo sistemático, o encaminhamento que as reformas republicanas, pautadas nos ideais
positivistas, traziam ao ensino superior. Na Academia do Norte ou, Escola do Recife, as ideias
filosóficas inovadoras são representadas por autores e obras presentes no acervo bibliográfico.
Peregrino fugiu ao padrão europeu pré-estabelecido para a organização do conhecimento e
estabeleceu um índice metódico apresentando as matérias destinadas aos professores e alunos do
Curso Jurídico. Assim, a Bibliografia Histórica proporciona à Organização do Conhecimento o
seu caráter interdisciplinar que faz com que elementos da Biblioteconomia e da História do
Livro se relacionem tendo o objeto-livro como fonte para a construção do objeto de estudo.
Pesq. Bras. em Ci. da Inf. e Bib., João Pessoa, v. 14, n. 4, p. 078-088, 2019.
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